segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

"Onde está a Su?" Pequeno texto apresentado em workshop de escrita criativa. Refere-se à Susan, jovem que naufraga na ilha onde está Robinson Crusoé.

 




Onde está a Su?[1]

Onde está a Su? Parece-me uma boa pergunta. Sobretudo hoje. E, já agora, mais outra. Onde estará o Fri?

Resposta para a segunda, eu consigo imaginar. Pensando bem, não imagino só, até aposto. Conheço bem a peça. Já completara os meus dezoito anos de estágio por cá, quando de repente me apareceu. A peça, claro. Sobre o estágio, devo corrigir, estou de licença sabática. Vinte anos nesta ilha já assinalados com traços grossos e finos na cruz que enterrei perto da costa alguns dias após o desembarque.  Este, foi com pompa e circunstância, os canibais perfilados na areia, numa formatura mais perfeita que o exército russo. Rigorosamente fardados, tangas da mais fina pele de cabra, com design de estilista parisiense, reproduzido na capa de uma revista que deu à costa na ilha dentro de uma garrafa. E a música? Começaram as percussões, entraram depois as flautas e apitos de madeira, finalmente as vozes, com urros em contraponto, a entoar melodias canibalescas. Os cantores na primeira fila tinham dedicado horas à limpeza completa das dentaduras. Dentes de um branco luminoso, quase angélico, sem o mínimo vestígio do jantar da noite anterior – três indígenas que apanharam no mato e comeram de churrasco – realizado depois do ensaio geral de coro.

Voltando à peça, o Fri, para que não restem dúvidas. Tratá-lo por peça é só para exteriorizar algo que sinto cá dentro, que fura a pele, provoca calores do Rio de Janeiro e dez segundos depois me coloca no Pólo Norte. Não dormi, tentei todas as camas e posições possíveis. No colchão de palha, depois da posição normal tentei com a cabeça para os pés, não deu. Tentativa nas peles de cabra colocadas no chão, também frustrada. Na rede suspensa em duas traves da cabana, quantas tardes lá dormi, desta vez não resultou. Voltei ao colchão de palha, o resto não sei, devo ter dormido, uns minutos talvez.

Ao princípio da noite quando tentara entrar na cabana e a sentiu trancada, disse: “poder entrar, Rob?”, fez-se silêncio, repetiu a pergunta, novo silêncio mais longo, percebi depois que partira. A aposta que faço: terá vagueado no mato toda a noite e não conseguiu dormir, tal como eu. Tive um sonho durante os poucos minutos de sono, que deve ter-lhe sido transmitido pelas aves noturnas que ouvi levantar voo no teto da cabana: estávamos abraçados de pernas entrelaçadas.

A Su chegara havia uma semana. Foi tudo muito rápido. Quando deu à costa só com um trapo na cintura, completamente despida, ele agarrou-a, abraçou-a, transportou aquele corpo leve e delicado para a cabana e depositou-o no colchão de palha. Depois olhou-me e disse: lady so beautiful. Percebi tudo. O resto é conhecido, faz parte da história do mundo, não é preciso recontar.

Agora somos três nesta ilha. O Fri sei onde está. Mas, onde está a Su?



[1] Página solta do diário de Robinson Crusoé (05-04-1680). Abreviaturas: Su=Susan; Fri=Friday; Rob=Robinson.


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