Um
dia na Póvoa de Varzim
Vinte de fevereiro de 2020,
Grande Hotel da Póvoa, quarto 317. São 7:30, o relógio biológico antecipou-se ao
despertar programado no telemóvel para as 8:15. Hoje será o segundo dia
completo nesta terra que, o ano passado por esta altura, me penetrou a alma. A
equipa do hotel correspondera ao pedido escrito na reserva: “quarto tranquilo
com vista agradável, se possível”. O sol começava a entrar pela janela. Fui ao
terraço e tirei foto da vista captando o calçadão, areal e o mar ao longe. Virei
costas e saquei selfie, partilhada com a família logo em seguida.
Enquanto ultimava arrumações
na mochila, companheira de sempre nas minhas andanças – cá dentro, lá fora, perto,
longe, curtas ou longas - recordei o dia de ontem. Começara com a sessão de
abertura no casino, onde o vereador da cultura tinha feito uma referência especial
ao escritor com mais participações no evento, que já comemorara o vigésimo
aniversário. O escritor lá estava de novo este ano e assinalou a presença para
que a audiência o visse. Conhecia aquele nome, mas nunca lera nada escrito por
ele.
Desço para o pequeno
almoço pensando: hoje terá de ser algo mais leve que ontem. E passei à prática:
cereais com leite quente, fatia de pão torrado, queijo fresco, café com leite a
escaldar e meio copo de sumo tropical. Preparei
depois duas mini sanduiches em pão, tipo bola, e meti-as na mochila multiusos.
Dentro dela, diferentes objetos já se habituaram há muito tempo a conviver como
uma família – canetas, telemóvel, o meu diário, carregadores, cartões, livros, maçãs,
sanduiches, canivete, etc. Antes de sair consultei o folheto do evento e li a
programação do dia. Assinalei o que me interessava assistir durante a manhã. O
almoço logo se veria, lembrava-me ainda de alguns restaurantes do ano passado.
Passei os olhos pela agenda da tarde - 15:00, mesa 3, auditório principal - lá
estava o escritor mais repetente e amante da Póvoa de Varzim na lista dos oradores.
Decidi assistir a essa sessão.
Caminhei com passos
lentos, tranquilo, manhã cheia de luminosidade - na Póvoa há primavera em
fevereiro - entrei no teatro onde decorriam as sessões, havia fila para assistir
à mesa 2, cujo tema era “Mulheres, artes e ditadura”. Consegui lugar. Foi uma
sessão interessante onde se recordaram os tempos de ditadura, censura e artes
amordaçadas pelo Estado Novo. Pelas 11:30 terminou. Ouvir aquele debate intenso
e reviver o dia da liberdade em Portugal, provocaram-me deambulações cerebrais que
foram contagiando outras partes do corpo. O estômago não resistiu. Ouvi então uma
mini sandes a despedir-se dos companheiros de mochila: “adeus amigos, vou ser
comida por quem nos transportou ao ombro durante esta manhã”.
Na livraria, ao lado do
teatro, assisti a uma apresentação de livros. Despertou-me interesse o
“Aprender a Falar com as Plantas” de Marta Orriols, jovem escritora radicada em
Barcelona. Comprei-o e pedi que embrulhassem para oferta. Chegara a hora de
almoço. Entrei no Café Ritz, um espaço agradável, decoração tipo taberna
inglesa, onde sobressaem as madeiras e quadros de cores vivas, comida saborosa
e gente simpática. Na noite da chegada, já um pouco fora de horas, tinha experimentado
e prometi que voltaria. Como muito bem diz e canta o Rui, o prometido é devido.
Só faltava decidir o prato. Vir ao norte, com o Porto aqui tão perto, e não saborear
algo típico, estava fora de questão. Fiz o pedido e ouvi de imediato: “sai uma
poveira, mesa 5!”. A francesinha poveira, servida em pão tipo baguete, tem um
sabor muito idêntico ao da invicta, mas é mais leve. No final, despedi-me dos
empregados: fiquem bem por cá, talvez volte para o ano. Perguntaram-me onde
morava. Quando disse Faro, vi sorrisos nos rostos.
Voltei ao teatro às 14:30,
abriram as portas e consegui lugar sentado à frente na zona central. Arrancou o
debate - mesa 3, tema “Era uma vez a liberdade” – no qual participavam
escritores de diferentes nacionalidades. José Luís Peixoto e Paula Lobato de
Faria jogavam em casa. Luís Sepúlveda, o amante da Póvoa, ocupava o extremo
direito da mesa, na perspetiva de quem está na audiência. A distância a que eu estava
dele seriam uns vinte metros. A expressão e fisionomia daquele rosto não
deixavam dúvidas, teria de ser alguém nascido num país da América do Sul ou Central.
Ao falar, sempre pausadamente, sem pressas, deixava no ambiente aromas de
simplicidade. Percebia-se que estava ali alguém que viveu a vida e está bem com
ela, que gosta e quer continuar a viver, partilhando experiências e valores com
família, amigos e leitores. Nas suas reflexões e relatos sobre “Era uma vez a
liberdade” ia misturando aromas e sabores agridoce, alguns muito mais agri
que doce – ditadura, perseguição, cativeiro – que o escritor degustara em
longas viagens pelo mundo. Saí daquela sessão impressionado. Tinha mesmo de
ler algo escrito por ele.
Depois de um passeio pela
marginal, voltei ao Teatro para assistir à mesa 4, cujo tema era “Tenho medo da
poesia”. Foi interessante ver o Miguel Araújo numa mesa cheia de escritores,
dizendo que não o era, apenas escrevia umas letras de canções. Modéstia
inteligente, com um sentido de humor único, diria, humor à moda do Porto. Os
aplausos longos da audiência no final da intervenção ilustraram bem a
performance do Miguel.
Depois de um jantar leve
no restaurante Rigor, segui para o hotel, eram 22:00, larguei a mochila,
refresquei-me e voltei a sair. Aquele calçadão imenso esperava-me. Quando o
relógio assinalou 3.500 passos, inverti a marcha. Vi a placa que assinalava o Hotel
Axis Vermar e dirigi-me para lá. Entrei numa sala onde se preparava a
apresentação de um livro. Só depois percebi qual seria – Pecados Correntes –
uma edição da Correntes D’Escritas 2020, com participações de vários autores, que
foi oferecido a todos os presentes na sala. Vivi aí um final de noite criativo,
animado e diferente de todas as apresentações de livros a que já assistira. As
intervenções dos autores, incluindo leituras, com destaque para a poesia,
criaram algo que descrevi desta forma: “isto parece-me surreal, mas sinto-me
bem aqui – será este o ambiente louco e divertido das artes da escrita que me
falta conhecer?”. Voltei ao Grande Hotel da Póvoa e apaguei a luz à 1:00 de
21/fevereiro.
=
Em estilo de epílogo =
Chegada a Faro, 22 de
fevereiro. Comecei a receber mensagens e chamadas de familiares e amigos:
estiveste na Póvoa? Perto do escritor? Sim, estive, mas fiquem tranquilos, foi
a mais de cem metros. Uma mentira ligeira. Comprei dois livros do Luís
Sepúlveda, que li de seguida. Faltam-me os outros.
A 16 de abril chegou a
notícia: Oviedo, Espanha: “o escritor morreu, vítima da pandemia COVID-19”. Ficam
a obra e as memórias do grande contador de histórias, pintor de ambientes, escultor
de paisagens.
... A tempestade desencadeou-se
muito mais cedo do que esperávamos, o céu fendeu-se em centenas de relâmpagos,
os raios destruíam árvores cujos troncos se partiam no meio de uma fumarada
impregnada de enxofre e começou a chover com uma intensidade que mal nos
permitia respirar.
... Na selva
amazónica, uma tempestade apaga em segundos as veredas abertas a machete, os
rios sobem alimentados pelos milhares de regatos transformados em enxurradas
que arrastam troncos, animais apanhados de surpresa, toneladas de lama e
folhagem, e também numa questão de minutos as margens baixas ficam cobertas por
vários metros de água furiosa que arrasta tudo à sua passagem.
Extraído
de - “O velho que lia romances de amor” - página 7, Luís Sepúlveda.
29/08/2020
Francisco Pinto